04 dezembro 2007

Governo ajuda madeireiras a devastar a Amazônia (Parte 3)

Os números da reforma agrária
Não foi somente o madeireiro que lucrou com o grande esquema. O governo Lula divulgou números recordes de famílias assentadas pelo Incra referentes ao seu primeiro mandato. Os assentamentos de papel da SR-30 tiveram participação capital nas metas anunciadas como cumpridas pelo governo. Em 2006, 25% das famílias beneficiadas pelo reforma agrária foram homologadas pela SR-30.
A demencial criação de assentamentos em áreas de floresta primária foi al´me de contentar o madeireiro, esse importante financiador de campanha, e também alimentou a burlesca fantasia dos números de assentados no II Programa de Reforma Agrária (PNRA) do governo Lula.
O programa Fantástico (TV Globo) e um Relatório Denúncia publicado pelo Greenpeace revelaram, em agosto último, que muitas famílias assentadas pela SR-30, na verdade, simplesmente não existiam. Eram mentira. Os assentamentos foram criados apenas no papel e um número imenso de famílias foi homologado em assentamentos que factualmente não existem, ou existem em lugares dos quais nunca ouviram falar e a dias de viagem de onde vivem. Muitas delas sequer sabem que constam como assentadas nos cadastros do Incra. Enfim, a terra não foi entregue às famílias que o Incra computou como assentadas. No interior dos assentamentos só se encontra uma voraz exploração das madeireiras.
Nos processos de criação dos assentamentos, as normativas que regulamentam a criação de assentamentos foram gritantemente ignoradas. Para Braga, esse atropelo cumpriu a função de suprir a inatividade de outras superintendências. “Toda a estrutura da superintendência foi usada para gerar números artificiais de assentados em 2005 e 2006. O Incra assumiu certas metas no II Plano Nacional de Reforma Agrária que não vinham sendo atendidas por outras superintendências Brasil afora”, explica o procurador da República.
Um servidor da SR-30 que pediu para não ser identificado conta que “as metas da SR-30 foram crescendo durante o ano de 2006. Inicialmente eram 15.000 famílias, depois aumentaram para 20.000 e pouco depois para 30.000. Na última semana do ano chegaram a 36.000. O objetivo sempre foi muito claro, era simplesmente para o governo dizer para a sociedade que tinha cumprido as metas do II PNRA”. O procurador Felipe Fritz Braga confirma a informação: “a cada viagem a Brasília, o superintendente trazia um novo aumento das metas”.
Os próprios servidores da SR-30, por meio de sua associação, a Assera (Associação dos Servidores da Reforma Agrária), confirmam o quadro generalizado de caos: “O mais absurdo de tudo é que assentamentos foram criados sem nenhuma das peças técnicas obrigatórias. Há processo em que há um oficio pedindo a formalização do próprio processo e logo em seguida a portaria de criação. O trâmite normal do Incra envolve desde a vistoria da área, consecução dos laudos de vistoria, mapas temáticos, pareceres de chefes, pareceres jurídicos, parecer de cartografia para evitar sobreposição de áreas de reservas ambientais, de terras indígenas, de unidades de conservação. A direção do Incra sabia disso e fingia que não sabia. Antes de os técnicos entregarem qualquer coisa dizendo se o assentamento era viável ou não, já existia uma portaria dizendo: ‘criado’ ”.

“Uma clara demonstração de desconsideração dos normativos internos”
“O nível de irregularidades nos processos de criação de assentamentos é assustador”, relata o Procurador da República, Felipe Fritz Braga, “a pressão sobre técnicos e servidores para que atropelassem todas as normas internas da autarquia foi tremenda”.
Apesar dos diretores nacionais, do Presidente do Incra e do ministro do MDA continuarem fingindo que nada acontece, para o Incra de Brasília, isso não é novidade alguma. Em junho último, um relatório interno do próprio Incra sobre a situação da SR-30, documenta um quadro surreal. No lugar dos diversos estudos de viabilidade e procedimentos formais, encontrou-se processos de criação de assentamentos “constituídos por apenas 3 páginas (memorando de formalização do processo, folha escrita ‘confere’ e cópia da Portaria de criação do projeto) numa clara demonstração de desconsideração dos normativos internos”, conforme o relatório do Incra.
Enquanto o presidente da autarquia e o ministro do MDA continuam o “faz de conta” que não existe nada, um grande grupo de servidores recém-ingressos no Incra e lotados na SR-30 reconhece o quadro de tramóias e se opõe a ele. À medida que foram tomando consciência das irregularidades em curso, assumiram, por meio da sua associação (Assera), uma postura de obediência às normas de execução da reforma agrária e recusaram-se a cumprir ordens que as contrariassem. Não fosse a postura desses jovens servidores, haveria um quadro ainda mais grave e, pior, em plena atividade.
Por conta de uma ampla gama de irregularidades, em 27 de agosto, a Justiça Federal atende liminarmente um pedido do MPF e interdita 99 assentamentos no oeste do Pará, que somam 30.000 km2, área equivalente ao estado de Alagoas.
Em 17 de setembro, o MPF tem atendido outro pedido de liminar e a Justiça Federal afasta do cargo cinco funcionários da SR-30, entre eles o próprio superintendente, Pedro Aquino de Santana, “homem da reforma agrária” de Lula. Acusação: envolvimento em toda sorte de improbidades administrativas.

“É por acreditar na legitimidade dos trabalhos executados na região que continuaremos...”
Toda a enorme tramóia é mais do que evidente e a situação do Incra no Pará perante a Justiça é, no mínimo, desconfortável. Ainda assim, o presidente do Incra, Rolf Hackbart, em comunicado oficial acerca do afastamento do superintendente da SR-30, Pedro Aquino de Santana, declara que: “É por acreditar na legitimidade dos trabalhos executados na região que continuaremos as ações planejadas e vamos recorrer da liminar expedida”. A nota soa como ameaça, especialmente quando se sabe que “ações”, para a SR-30, têm significado a fabricação de números para a reforma agrária, atropelando as leis e as normativas da autarquia e, principalmente, criando assentamentos de papel para suprir a demanda do setor madeireiro no oeste do Pará.
O procurador da República em Altamira (PA), Marco Antonio Delfino, frente ao posicionamento de Hackbart, questiona como pode ser considerado legítimo uma situação que demandou, no último mês, a alocação de cerca de R$ 3 mi para que se corrigissem as inúmeras irregularidades cometidas. “A declaração de Hackbart comprova a improbidade: seja nos vícios cometidos na criação dos assentamentos; seja na liberação dos recursos para corrigir o que não está irregular”, completa o procurador.
Mas os sinais de que a política de reforma agrária voltada ao madeireiro irá continuar não fica na retórica de Hackbart. Com o afastamento de Pedro Aquino de Santana, o diretor Nacional de Programas, Raimundo Lima, foi nomeado como superintendente interino. O mesmo Raimundo Lima que participara em 2004 da reunião comentada acima, onde germinou o projeto de fazer assentamentos para resolver o problema dos madeireiros do oeste do Pará.
A nomeação é mais uma manifestação da postura de não reconhecimento do Incra nacional quanto às evidentes e públicas ilegalidades da SR-30. Como explica Braga, “reunimos depoimentos que apontam inclusive para a presença de Raimundo Lima na superintendência de Santarém ao longo dos trabalhos de criação desenfreada dos assentamentos nos dois últimos anos. Elogiava, na presença de todos os servidores, laudos agronômicos de péssima qualidade, como modelo de trabalho”.
Logo que acumulou o cargo de superintendente interino, Raimundo Lima anunciou que um dos objetivos do Incra é o desmatamento zero nos assentamentos. Mais um desaforo ao raciocínio de todos. Ora, como pensar em desmatamento zero se os assentamentos foram criados em meio a florestas virgens? Acaso o Incra pensa em transformar toda a agricultura familiar e a relação com a terra dos beneficiários da reforma agrária em uma atividade madeireira?
O desmatamento zero nos assentamentos seria absolutamente viável caso fosse feita “reforma agrária” no oeste do Pará. Caso o Incra retomasse as imensas porções de terras públicas ocupadas e já desmatadas por grileiros e lá criasse os assentamentos. Porém, parece que isso geraria dois grandes problemas: desagradaria aos grileiros e não atenderia a necessidade dos madeireiros.

Maurício Torres é pesquisador e trabalha na região oeste do Pará.
Fonte: http://carosamigos.terra.com.br/nova/ed128/so_no_site_geral_torres.asp