A enorme maioria das terras na Amazônia são públicas. E a enorme maioria das terras públicas na Amazônia está grilada. O roubo de terras, de tão comum, banalizou-se e, não raro, é tido como ato heróico: a prova de espírito desbravador e bandeirante, do empreendedor que desafia as maiores adversidades para levar à selva o progresso e o desenvolvimento.
Mesmo quando esse “empreendedor” rouba territórios indígenas e de outros povos da floresta, valendo-se sempre de muita violência, há quem defenda que, ao expropriar essas populações e relegá-las a um subemprego, fazem um grande bem, salvando-as de seu modo pré-histórico de mísera existência e promovendo-as à moderna condição de empregadas. Ou seja, ao roubarem-lhes tudo, os “empreendedores” da Amazônia estariam desempenhando uma ação “civilizatória”.
Em Mato Grosso, a tomada de grande parte dos territórios das populações originárias – e um longo enredo de massacres testemunha a “metodologia” adotada – acabou sendo legitimada por tortuosos caminhos. Aliás, nesse enredo, foi expedida a documentação a muitas áreas onde hoje estão os campos da soja, nosso “orgulho nacional”, o paradigma do agronegócio.
Em estados como o Pará e o Amazonas, apesar de imensas extensões estarem controladas por grileiros, eles ainda não conseguiram “esquentar” a apropriação. A terra continua formalmente em nome da União ou dos estados. Isso não lhes causa maiores problemas. Vendem seus bois, soja, arroz ou qualquer outra coisa que plantem ou criem sem que ninguém pergunte se a área onde isso foi produzido é documentada ou se é terra pública ilegalmente tomada. Até para a obtenção de financiamentos, a grilagem não é empecilho. Quando os bancos públicos endurecem um pouco, pode-se obter recursos com a Cargill, por exemplo, que patrocinou na região de Santarém a derrubada de florestas primárias e o plantio de soja em áreas sem nenhuma documentação de propriedade, no mais claro incentivo à grilagem e ao crime ambiental.
Nesse sentido, a extração madeireira seria diferente do boi e da soja: para derrubar e transportar madeira há que se ter a devida licença e, para isso, teoricamente, seria necessária a documentação fundiária. Porém, a complacência de sucessivos governos com a grilagem decidiu que seria rigor excessivo exigir a prova de propriedade da terra para se conceder a autorização para extração madeireira. Assim foi até 2003. O saque das florestas públicas em benefício de uma meia dúzia de madeireiros era oficialmente licenciado.
A partir de 2004, o Ibama altera sua conduta, de modo que qualquer Plano de Manejo Florestal (PMF) só será aprovado caso o requerente apresente o título de propriedade da terra. Aliás, nada além do que determina a lei. No final desse ano, a direção nacional do Ibama recomenda ainda o cancelamento dos PMF que houvessem sido aprovados em terras não tituladas.
O então gerente do Ibama em Santarém-PA, Paulo Maier, foi o único a cumprir a recomendação, enfrentando, por conta disso uma enorme pressão de madeireiros e grileiros. Os madeireiros queixavam-se de que o setor mergulharia em uma terrível crise por conta do posicionamento do Ibama. Ironicamente, a própria queixa era uma auto-declaração de que todo o setor atuava na ilegalidade, roubando madeira de terras públicas.
A “solução final” para perenizar o saque das florestas públicas e efetivar sua entrega definitiva ao madeireiro já estava a caminho: a Lei de Gestão de Florestas Públicas. Porém, todos sabiam que ainda se demorariam alguns anos para pô-la em prática. Assim, o milionário e ilegal agronegócio da madeira no oeste do Pará começa o ano 2005 em xeque. O que ninguém sabia era que, em bastidores, costurava-se, sob o manto da reforma agrária, uma nova forma para garantir ao agronegócio, maneira para que seguisse se apoderando das florestas públicas.
“Um uso criminoso da reforma agrária”
Em 2005, o Incra inaugura a Superintendência Regional de Santarém (SR-30) e inicia uma colossal criação de assentamentos. Pedro Aquino de Santana, o superintendente, alardeia ser conhecido por Lula pela alcunha de “o homem da reforma agrária”. A maioria dos assentamentos criados são da modalidade Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS), que, entre outras particularidades, mantém no mínimo 80% do assentamento como área de uso coletivo e administrado por uma associação (teoricamente) formada pelos assentados.
Simultaneamente à produção em massa de assentamentos, os madeireiros voltam à cena como os grandes paladinos da reforma agrária. A imprensa local registra as mais curiosas declarações: “presidente do Sindicato de Indústrias Madeireiras do oeste do Pará (Simaspa) diz que o setor madeireiro é o maior interessado na implantação dos PDS”; “madeireiros concordam em abrir mão do direito às suas posses para a criação de PDS”; “madeireiros disponibilizam 100.000 hectares para a criação de PDS”; “Segundo o Simaspa, as indústrias madeireiras já passaram ao Incra as coordenadas para a implantação dos PDS”; (Jornal de Santarém e Baixo Amazonas, dez. 2005).
A devoção dos madeireiros à causa da reforma agrária chega ao ponto desses abnegados oferecerem-se a dividir com o Incra os custos para criação de assentamentos. Segundo um servidor da SR-30 que pediu para não ser identificado, “para que as equipes fossem a campo fazer os trabalhos para criação de assentamentos, os madeireiros ofereciam e garantiam a verba para combustível, manutenção de veículos e mais o que fosse preciso”.
Por trás de tamanho altruísmo, ocultava-se um pacto que o geógrafo Ariovaldo Umbelino de Oliveira qualificou como “um uso criminoso da reforma agrária”: seriam usados assentamentos como área regularizada em termos fundiários para a extração de madeira. O governo federal conseguia a façanha de usar a reforma agrária para um fim diametralmente oposto: garantir a apropriação dos recursos pelo madeireiro, mesmo que isso viesse em prejuízo de camponeses sem-terra e povos da floresta.
Mesmo quando esse “empreendedor” rouba territórios indígenas e de outros povos da floresta, valendo-se sempre de muita violência, há quem defenda que, ao expropriar essas populações e relegá-las a um subemprego, fazem um grande bem, salvando-as de seu modo pré-histórico de mísera existência e promovendo-as à moderna condição de empregadas. Ou seja, ao roubarem-lhes tudo, os “empreendedores” da Amazônia estariam desempenhando uma ação “civilizatória”.
Em Mato Grosso, a tomada de grande parte dos territórios das populações originárias – e um longo enredo de massacres testemunha a “metodologia” adotada – acabou sendo legitimada por tortuosos caminhos. Aliás, nesse enredo, foi expedida a documentação a muitas áreas onde hoje estão os campos da soja, nosso “orgulho nacional”, o paradigma do agronegócio.
Em estados como o Pará e o Amazonas, apesar de imensas extensões estarem controladas por grileiros, eles ainda não conseguiram “esquentar” a apropriação. A terra continua formalmente em nome da União ou dos estados. Isso não lhes causa maiores problemas. Vendem seus bois, soja, arroz ou qualquer outra coisa que plantem ou criem sem que ninguém pergunte se a área onde isso foi produzido é documentada ou se é terra pública ilegalmente tomada. Até para a obtenção de financiamentos, a grilagem não é empecilho. Quando os bancos públicos endurecem um pouco, pode-se obter recursos com a Cargill, por exemplo, que patrocinou na região de Santarém a derrubada de florestas primárias e o plantio de soja em áreas sem nenhuma documentação de propriedade, no mais claro incentivo à grilagem e ao crime ambiental.
Nesse sentido, a extração madeireira seria diferente do boi e da soja: para derrubar e transportar madeira há que se ter a devida licença e, para isso, teoricamente, seria necessária a documentação fundiária. Porém, a complacência de sucessivos governos com a grilagem decidiu que seria rigor excessivo exigir a prova de propriedade da terra para se conceder a autorização para extração madeireira. Assim foi até 2003. O saque das florestas públicas em benefício de uma meia dúzia de madeireiros era oficialmente licenciado.
A partir de 2004, o Ibama altera sua conduta, de modo que qualquer Plano de Manejo Florestal (PMF) só será aprovado caso o requerente apresente o título de propriedade da terra. Aliás, nada além do que determina a lei. No final desse ano, a direção nacional do Ibama recomenda ainda o cancelamento dos PMF que houvessem sido aprovados em terras não tituladas.
O então gerente do Ibama em Santarém-PA, Paulo Maier, foi o único a cumprir a recomendação, enfrentando, por conta disso uma enorme pressão de madeireiros e grileiros. Os madeireiros queixavam-se de que o setor mergulharia em uma terrível crise por conta do posicionamento do Ibama. Ironicamente, a própria queixa era uma auto-declaração de que todo o setor atuava na ilegalidade, roubando madeira de terras públicas.
A “solução final” para perenizar o saque das florestas públicas e efetivar sua entrega definitiva ao madeireiro já estava a caminho: a Lei de Gestão de Florestas Públicas. Porém, todos sabiam que ainda se demorariam alguns anos para pô-la em prática. Assim, o milionário e ilegal agronegócio da madeira no oeste do Pará começa o ano 2005 em xeque. O que ninguém sabia era que, em bastidores, costurava-se, sob o manto da reforma agrária, uma nova forma para garantir ao agronegócio, maneira para que seguisse se apoderando das florestas públicas.
“Um uso criminoso da reforma agrária”
Em 2005, o Incra inaugura a Superintendência Regional de Santarém (SR-30) e inicia uma colossal criação de assentamentos. Pedro Aquino de Santana, o superintendente, alardeia ser conhecido por Lula pela alcunha de “o homem da reforma agrária”. A maioria dos assentamentos criados são da modalidade Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS), que, entre outras particularidades, mantém no mínimo 80% do assentamento como área de uso coletivo e administrado por uma associação (teoricamente) formada pelos assentados.
Simultaneamente à produção em massa de assentamentos, os madeireiros voltam à cena como os grandes paladinos da reforma agrária. A imprensa local registra as mais curiosas declarações: “presidente do Sindicato de Indústrias Madeireiras do oeste do Pará (Simaspa) diz que o setor madeireiro é o maior interessado na implantação dos PDS”; “madeireiros concordam em abrir mão do direito às suas posses para a criação de PDS”; “madeireiros disponibilizam 100.000 hectares para a criação de PDS”; “Segundo o Simaspa, as indústrias madeireiras já passaram ao Incra as coordenadas para a implantação dos PDS”; (Jornal de Santarém e Baixo Amazonas, dez. 2005).
A devoção dos madeireiros à causa da reforma agrária chega ao ponto desses abnegados oferecerem-se a dividir com o Incra os custos para criação de assentamentos. Segundo um servidor da SR-30 que pediu para não ser identificado, “para que as equipes fossem a campo fazer os trabalhos para criação de assentamentos, os madeireiros ofereciam e garantiam a verba para combustível, manutenção de veículos e mais o que fosse preciso”.
Por trás de tamanho altruísmo, ocultava-se um pacto que o geógrafo Ariovaldo Umbelino de Oliveira qualificou como “um uso criminoso da reforma agrária”: seriam usados assentamentos como área regularizada em termos fundiários para a extração de madeira. O governo federal conseguia a façanha de usar a reforma agrária para um fim diametralmente oposto: garantir a apropriação dos recursos pelo madeireiro, mesmo que isso viesse em prejuízo de camponeses sem-terra e povos da floresta.
Fonte: http://carosamigos.terra.com.br/nova/ed128/so_no_site_geral_torres.asp