21 novembro 2005

EDUCAÇÃO COMO PRÁTICA PARA O DESENVOLVIMENTO LOCAL: AVALIANDO ALGUNS RESULTADOS EM PACAJÁ

Dion Márcio Carvaló Monteiro*
Mário Jorge Brasil Xavier
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1 – O INÍCIO DO PROJETO ALFA-CIDADÃ EM PACAJÁ
Em novembro de 2002 foi firmado um Convênio entre o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), a Fundação de Amparo e Desenvolvimento da Pesquisa (FADESP) e a Universidade Federal do Pará (UFPA), como interveniente, com o objetivo de alfabetizar trabalhadoras e trabalhadores rurais dos Projetos de Assentamento (PA’s) ligados ao referido Instituto. O resultado deste convênio foi denominado Projeto Alfabetização Cidadã na Transamazônica (ALFA-CIDADÃ), abrangendo um total de 09 municípios
[1].
O levantamento inicial em Pacajá apontou a existência de 360 trabalhadores(as), com mais de 15 anos, interessados em serem alfabetizados(as), indicando assim um total de 19 turmas. Posteriormente, o número de turmas foi reduzido para 16, pois se verificou que algumas pessoas, cadastradas originalmente, já estavam sendo atendidas por um outro projeto.
O processo de formação dos alfabetizadores(as) que trabalhariam no ALFA-CIDADÃ começou ainda em dezembro de 2002, entre estes estavam os que haviam sido escolhidos pelos representantes dos movimentos sociais para atuar em Pacajá. O contato com a concepção freireana de educação causou inicialmente surpresa a todos que participaram deste processo, sendo isto expressado pelos próprios alfabetizadores(as), que afirmavam haver vindo preparados, com caderno, caneta, lápis e borracha, para receber uma educação tradicional, uma educação bancária.
As atividades lúdicas, dinâmicas, a confecção de painéis, cartazes, poesias, músicas, sempre partindo da própria realidade vivenciada pelas trabalhadoras e trabalhadores rurais da região, a construção de textos como ponto de partida neste processo de alfabetização, a discussão sobre a situação sócio-econômica, ambiental e cultural do próprio agricultor, tudo isso foi, sem dúvida, uma interessante descoberta para estas pessoas, acostumadas com as cartilhas e com os livros prontos, importados de realidades e partindo de exemplos totalmente estranhos ao modo de vida amazônico.
As aulas nos assentamentos estavam marcadas para começar no dia 06 de janeiro de 2003, porém em Pacajá, como em outros municípios, verificaram-se muitos problemas, principalmente infra-estruturais (estradas, salas de aula, equipamentos, etc.), o que dificultou o início de algumas turmas. O Quadro de Funcionamento das Turmas do mês de fevereiro indicou que das 16 turmas que deveriam estar funcionando, apenas 09 (56,25%) estavam efetivamente em atividade, 07 (43,75%) ainda não haviam começado em decorrência dos problemas anteriormente citados. O Quadro de Funcionamento das Turmas do mês de março já apresentava uma situação melhor, pois das 16 turmas existentes 15 já estavam funcionando (93,75%) e apenas 01 (06,25%) ainda não havia conseguido iniciar suas atividades, situação esta que foi totalmente resolvida no mês de abril.
O segundo processo de formação ocorreu entre os meses de março e abril e o terceiro entre julho e agosto de 2003, quando os alfabetizadores(as) já estavam bem mais adaptados a concepção trabalhada, até porque já a tinham aplicado durante todo o primeiro semestre do ano de 2003, nas turmas. Conjuntamente a estes períodos de formação estava ocorrendo o processo de escolarização dos alfabetizadores(as) que ainda não possuíam o ensino fundamental completo, o que foi mais um elemento que contribuiu com o desempenho destes educadores(as), principalmente dos que compreenderam mais rapidamente a proposta política e pedagógica do projeto.
Nos períodos de formação foi possível obter muitas informações a respeito das limitações e avanços verificados pelos alfabetizadores(as) de Pacajá, no processo de alfabetização.
Algumas limitações apontadas pelos alfabetizadores(as): a irregularidade na presença de alguns alunos(as); as noites que “não possuem lua” (lua nova), o motivo deve-se aos alfabetizandos(as) precisarem caminhar por longas trilhas apenas com uma lanterna, lamparina ou com uma espécie de tocha, o que fica mais difícil em noites com pouca iluminação natural; o cansaço dos agricultores(as), após todo o dia de trabalho, bem como as longas distâncias percorridas pela maioria para chegar até ao local onde fica a escola; a precariedade na estrutura da escola, tendo que ser muitas vezes improvisada na residência dos alfabetizadores(as); a não existência de carteiras em número suficiente para todos e, algumas vezes, a não existência de nenhuma carteira na sala de aula; a não existência de quadro negro em algumas salas; a falta de lampião; a época da colheita foi apontada como negativa, no que diz respeito às atividades escolares, pois é o período em que os trabalhadores(as) mais faltam às aulas; as salas de aula sem paredes e, sem uma estrutura adequada, não propiciando o bom desenvolvimento das atividades pedagógicas com os alfabetizandos(as); as doenças também foram apontadas por alguns como um fator prejudicial, levando a ausência de vários alfabetizandos(as) e até mesmo o abandono às aulas por parte destes; a resistência de alguns alfabetizandos(as) em relação a proposta pedagógica aplicada; a parceria com o poder público foi citada como algo precário, não apresentando os resultados esperados; a precariedade das estradas utilizadas para chegar ao local de aula.
Alguns avanços apontados pelos alfabetizadores(as): a capacidade que alguns alfabetizandos(as) já apresentam de unir palavras, construindo pequenas frases, lendo-as e compreendendo-as; o interesse, participação e animação com que os alfabetizandos(as) encaram o processo da alfabetização, contribuindo muito com os avanços verificados; a pontualidade que a maioria dos alfabetizandos(as) procura ter com o início das aulas, muito importante para o rendimento do ensino; uma maior “curiosidade” por parte dos alfabetizandos(as), principalmente no que diz respeito às questões apresentadas, querendo saber sempre mais sobre o significado e como se escrevem determinadas palavras; a coragem e o esforço que os alfabetizandos(as) demonstram no processo da aprendizagem, superando os obstáculos que se apresentam; uma maior facilidade na aplicação da concepção freireana por parte dos alfabetizadores(as), levando a possibilidade também de um maior desenvolvimento e melhor resultado nas atividades realizadas com os alfabetizandos(as); o desenvolvimento das atividades dialógicas, garantindo uma maior integração entre alfabetizandos(as) e alfabetizadores(as).

2 – ALGUMAS CONSIDERAÇÕES E RESULTADOS PRELIMINARES
Os primeiros dados coletados no final do primeiro ano do projeto, no mês de dezembro de 2003, apresentam algumas informações que necessitam de uma avaliação mais detalhada para que se definam novas ações por ocasião da provável reedição do mesmo, ou para dar suporte a outros projetos de alfabetização do campo que virão. Desta forma, serão apresentados estes dados procurando já neste momento elencar algumas considerações.
O Quadro da Situação Final do Projeto em Pacajá indica que iniciaram, em janeiro de 2003, 301 trabalhadores(as) alfabetizandos(as) no ALFA-CIDADÃ, no levantamento de abril verificou-se a entrada de 13 novos alunos(as), totalizando 314 pessoas, em julho estavam participando efetivamente das aulas 310 alunos(as), no levantamento realizado no mês de agosto verificou-se a participação de 287 educandos(as) e, no último levantamento, em dezembro de 2003, apurou-se que concluíram o curso 290 alfabetizandos(as). Considerando apenas a quantidade de alunos que iniciaram as aulas (301) e o levantamento quantitativo final (290), verifica-se uma taxa de 96,35% (do número inicial) que concluíram o curso, o que não quer dizer que estes educandos(as) eram exatamente os mesmos que estavam presentes no início do processo.
Estas informações indicam uma evasão quantitativa de 3,65%, bastante reduzida em relação à média geral do projeto que foi de 23,44%. Porém, somente foram considerados alfabetizados(as) 223 pessoas das 290 que concluíram o curso, um percentual de 76,89% de alfabetização, inferior a média do projeto que foi de 82,29%. Ressalta-se aqui que ser alfabetizado(a), na concepção política adotada, não demanda apenas a capacidade de assinar o nome ou decodificar símbolos, exige-se a capacidade de compreender o que se lê e escreve, indicando uma possibilidade de interação qualitativa com o meio, transformando-o.
É neste contexto que as ações do projeto Alfabetização Cidadã na Transamazônica foram dirigidas. Desta forma, a partir das observações feitas e, ao dialogar com os(as) responsáveis pelo projeto na área, pode-se identificar alguns dos elementos que foram desenvolvidos.
Em relação às discussões que permeavam as aulas, estas envolviam aspectos relevantes relacionados à realidade dos alfabetizandos(as). Assim, esta troca de experiência que antes era feita “somente” aos domingos, geralmente antes da missa, passou a estar presente todos os dias, contribuindo com um aprendizado que inseria em seu contexto elementos relacionados ao mercado, comercialização, criação de animais, tratamento de pragas que prejudicavam a plantação, etc.
Quanto aos debates sobre matemática, utilizava-se como exemplo a quantidade plantada e coletada por cada um, a cubagem da madeira, o tamanho da propriedade, a quantidade de animais que são criados e, outros exemplos relevantes a realidade local, tanto contribuindo com o aprendizado dos alfabetizandos(as) no que se refere a letras e números, quanto ajudando no desenvolvimento das atividades inerentes ao dia a dia do trabalhador(a).
Os aspectos da regionalidade também foram trabalhados permanentemente como elemento de alfabetização e desenvolvimento local. O resultado desta prática foi uma maior valorização da identidade amazônica presente em cada uma destas trabalhadoras e trabalhadores, a compreensão e consideração de suas peculiaridades regionais, em especial da região da Transamazônica e do município de Pacajá, inserindo aspectos da cultura, folclore, lendas, contos, culinária, danças, entre outros, fundamentais neste processo de valorização do saber local.
Ainda existem muitas dificuldades no que diz respeito às questões infra-estruturais, principalmente quanto à iluminação. A pesquisa que deu origem ao Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil apontou um grande déficit em relação a esta situação no município, indicando que em 2000 somente 31,7% das residências recebiam fornecimento de energia elétrica. A situação se complica mais ainda quando se consideram apenas as áreas de assentamento, onde as residências são geralmente supridas por motor movido a óleo diesel, isto quando possuem este equipamento. As escolas, ou as estruturas que servem como escola, utilizam, quase todas, lampião a gás, porém, a grande maioria possui apenas um destes equipamentos, quantidade insuficiente para uma boa iluminação da sala de aula. Os próprios coordenadores locais e alfabetizadores(as) tem comprado o gás que abastece o lampião pois a parceria com a prefeitura, que deveria ser a responsável por esta aquisição, não funcionou.
As dificuldades infra-estruturais provocaram a reação de algumas comunidades, como exemplo cita-se a Comunidade Boca Rica, do Assentamento Arataú, que organizou uma comissão de moradores, muitos ligados ao projeto e, dirigiu-se a Câmara de Vereadores de Pacajá para protestar e exigir que os parlamentares pressionassem o poder executivo no sentido de que este resolvesse pelo menos parte dos inúmeros problemas por que passam aqueles agricultores(as).
Além dos aspectos relacionados a demanda por melhorias e ao gerenciamento da família e da propriedade, incrementados pelo projeto, outro elemento significativo foi o relacionado ao desenvolvimento na capacidade de construir coletivamente estes processos reivindicatórios, neste sentido, verifica-se que as pessoas, principalmente aquelas que fizeram parte do ALFA-CIDADÃ, estão incentivando os demais membros da comunidade a mobilizarem-se de forma coletiva, muito mais do que antes, demonstrando uma importante capacidade de agir a partir de necessidades comuns.
Aspectos como estes referendam o trabalho que foi desenvolvido pelos educadores(as), coordenadores(as), alunos(as) universitários(as) e alfabetizadores(as) do projeto, tanto em Pacajá quanto nos demais município, apesar de conhecerem as dificuldades e saberem que uma verdadeira revolução na educação somente ocorrerá quando todos os atores responsáveis resolverem assumir técnica e politicamente esta tarefa. Paciência e perseverança parecem ser palavras-chave neste processo de construção de uma alfabetização dialógica, libertadora e transformadora, ou como reivindica o título do projeto, de uma alfabetização verdadeiramente cidadã.
* Economista, Mestre em Planejamento do Desenvolvimento – PLADES/NAEA/UFPA e Professor da UNAMA. E-mail: dionmonteiro@yahoo.com.br
** Cientista Social, Mestre em Antropologia – UFPA e Professor do UEPA. E-mail: mjbrasil@uol.com.br
[1] Altamira, Anapú, Aveiro, Brasil Novo, Itaituba, Medicilândia, Pacajá, Senador José Porfírio e Uruará.