Grande parte de sua vida, mais de 40 anos, meu pai Valdemarzinho catou e cortou castanha nas terras de Pedro Marinho de Oliveira. Enquanto Don’Ana lavava roupas no Itacayunas, Valdemarzinho remava sua canoa Tocantins acima e ia embora: entrava pelas sinuosas curvas do Tauaryzinho até desfazer-se por longos meses nas matas do castanhal Consulta. Solitário e corajoso, meu pai gostava mesmo era de trabalhar e estar só naquelas matas de tempos verdes e duendes.
Em 1974, já adulto, e meu pai mesmo idoso ainda escarafunchando a mata, fui de penta, nos primeiros meses do ano, época de cheias, conhecer a colocação. Só de ida a viagem, que seria de seis a oito horas, durou dia e meio. Celso “Pato” Brasil, Seu Rico e aquele monstruoso par de óculos escuros Fittipaldi, Zezé Rosa, seu Edésio, Tunico Braga, Ademir Martins, o piloto Diodésio, eu e outros que me fogem à memória (mas juro que Nego Quinca estava lá!), bebemos neste escasso período uma caixa, um engradado, duas sacas de sarrapilheira atulhadas de garrafas cheias até o gogó e mais alguns litros avulsos de cachaça enquanto navegávamos numa algazarra de espantar as jaçanãs.
Tauaryzinho acima, quase em frente à morada de Mané Pifeiro o motor empacou. Anoitecia e tivemos de aportar na ribanceira porque era impossível continuar escuro a dentro, entre galhos que desciam de bubuia ou avançavam ameaçadores das margens estreitas do igarapé. Aparecera alguma encrenca no Archimedes, máquina sueca maravilhosa que desde os tempos épicos empurrava barcos carregados de castanha, e surpreendeu-me a coincidência: fomos dar prego bem em frente à casa do maior festeiro das redondezas. E prego dos bons, justo no martelete do cabeçote de ignição, o que forçou seu Edésio a vir de cavalo, no meio da noite, buscar peça nova em Marabá.
O defeito era pura invenção! Diodésio armara a coisa para a gente passar a noite em casa do Mané Pifeiro, longe dos olhos de camiranga de seu Edésio, homem sério e da confiança do patrão.
Armadas as redes, barriga cheia de frito, garrafa de cachaça ao alcance da mão, naquela noite até gato voou. Um monte de carvão ocupava praticamente metade do barracão de Pifeiro, onde as redes foram atadas à luz de uma poronga. Já meio bicados, contávamos piadas deitados e ríamos por qualquer coisa quando começaram a voar e a cair enormes pedaços de carvão sobre nossas cabeças. Penso ainda hoje que foi Tunico Braga quem iniciou os arremessos. Em resposta, planou para todos os lados uma revoada de chinelos, precatas, congas, e no meio de tanto granizo um gato caiu dentro da rede e em cima do peito de Celso Brasil. Qual dos dois uivou mais assustado dentro da noite não se sabe.
Nem bem apeou da montaria, seu Edésio soube de tudo por Mané Pifeiro, o linguarudo. A cabroeira, o magote de porre, não tinha princípios cristãos nem de cidadania, disse ele. Esparramaram meu carvão de encomenda, o barracão está imundo e ainda rebolaram meu gato de estimação, onde já se viu?! Aquilo não era mesmo proceder de gente, admitiu seu Edésio, fôlego ainda célere da cavalgada noturna. Tinha a voz pausada e macia, de pelica, mas as lapadas da língua queimavam como umbigo-de-boi. E já que era para jogar rebolo, ia sapecar n’água aquela sandália que acabara de acertar-lhe o ouvido. “A sandália é minha, mestre, mas não fui eu que joguei. Até me acertaram um gato e não sei o que vou dizer em casa quando a mulher me ver todo arranhado no peito”, reclamou Celso Brasil. E o Tunico Braga ali, na bucha: “Diz que foi o gato e ela te mata!” Até seu Edésio riu do jogo de palavras.
Levantamos cedo e jogamos Zezé Rosa dentro d’água. Como ele não sabia nadar, amarramos o manilhão do barco por baixo de seus braços e ele veio algum tempo a reboque, a ressaca de molho.
O castanhal Consulta ficava logo após a curva do rio. Uma prainha de areias brancas, uma ponta de terra com alguma grama, o barracão meio cheio de castanha e o ressôo da mata virgem por detrás. Pulamos na água fria, cor de ouriço, e comemos galinha caipira. O arroz era muito alvo na panela de ferro, e em torno da mesa de madeira dividimos alguns goles com o cozinheiro. Da mata vinha o cheiro de seivas, folhagens e por trás do canto das aves um enorme silêncio. O sol estalava sobre as folhas do verde oceânico. Encontrei meu pai e ficamos ali, juntos, terremotos de silenciosa ternura a desmantelar o coração – sempre foi assim.
Desde então a Consulta me é uma referência mágica, tal qual os extintos garimpos de diamante do Tocantins, abaixo do Itupiranga – Bagagem, Piranheira, Sumaúma, Urubuzinho – onde a saudade em correnteza levou-me certo dia em busca do meu pai também naqueles anos 70, quando ele, Zé Garimpeiro, Pedro Cascalho e outros septuagenários levaram sua nostalgia em viagem de despedida às corredeiras e seus diamantes que seriam afogados para sempre sob a represa. Se o castanhal era parte da vida do meu pai, a outra parte aflorava entre pedrais, ternos de peneira, farrachos, guriatãs e córregos por onde subiam levas de matrinchãs.
Tantos anos depois e me vem esta vontade de tornar à Consulta, hoje um povoado de camponeses. Tudo porque dia desses encontrei no terminal rodoviário do km-6 o Elvan do Vale (Sadôba), que me apresentou Siliveste, daquela comunidade. Eles então me falaram que na Consulta são já moradores antigos (e me deu vontade de ir conhecê-los) o João Magro, o Chico Galinha, Rofé, Xará, Emoge, Conceição Castanheira, Maria Buchéca, Raimundo Bulacha, Maria Godóia, Antônio Neite “Mosquito”, e um artista da voz chamado Gabilanha. Tudo gente da mais fina estirpe. Como meu pai. (16nov06)
Fonte: http://quaradouro.blogspot.com/search?updated-max=2007-03-23T17%3A25%3A00-07%3A00&max-results=7