UM SISTEMA de justiça penal incapaz de produzir uma sentença definitiva após onze anos de tramitação sem dúvida padece de defeitos estruturais graves. Independentemente da competência e da respeitabilidade de muitos de seus integrantes, esse sistema precisa ser inteiramente reformado.
Veja-se o caso do processo-crime movido pelo Ministério Público contra os dois oficiais responsáveis pelo massacre de trabalhadores sem terra, em Eldorado do Carajás, Estado do Pará. O crime foi cometido há onze anos - no dia 17 de abril de 1996.
Nesse período, a Justiça não decidiu se os réus - autores da ordem de disparo contra as vítimas - atuaram no estrito cumprimento do dever; ou extrapolaram suas funções; ou obedeceram ordens de autoridades superiores (as quais, diga-se de passagem, nem sequer foram denunciadas pelo Ministério Público).
Será necessário tanto tempo para a Justiça decidir essas questões, mesmo tratando-se de um crime fotografado, filmado e presenciado por centenas de pessoas? De um crime que deixou 19 mortos, 69 mutilados e centenas de feridos?
Dos 144 réus, dois - o comandante e o subcomandante do massacre - foram condenados pelo Tribunal do Júri a 228 e 154 anos de reclusão. Pura pirotecnia para aplacar a opinião pública! Até hoje, o processo criminal perambula pelos tribunais do país e os condenados continuam livres.
No cível, a mesma coisa: até agora as ações de indenização por perdas sofridas pelas vítimas não produziram resultado algum.
A população rural - enorme segmento da população brasileira - não consegue ser ouvida por nenhuma instância do Estado: o Executivo não avança na reforma agrária; o Legislativo só se lembra dela para tentar criminalizar suas entidades representativas; e o Judiciário, tão rápido na concessão de ordens de despejo, não prende os que assassinam suas lideranças nem resolve em tempo razoável os processos de desapropriação e de discriminação de terras públicas.
A trágica ironia é que os mesmos sem-terra estão legalmente assentados no mesmo imóvel que estavam ocupando quando foram despejados à bala para cumprimento de uma ordem de despejo. Em outras palavras: o Estado reconheceu que o imóvel não cumpria a função social da propriedade e, portanto, enquadrava-se perfeitamente nos casos em que o governo federal está autorizado a desapropriá-lo para fins de reforma agrária, como prescreve a Constituição.
Se, em vez de decretar um despejo a toque de caixa, a Justiça e o Executivo tivessem agido nos termos da lei, dezenove vidas teriam sido poupadas e 69 pessoas não teriam sido mutiladas.
As classes dominantes recusam-se a compatibilizar o ritmo da reforma agrária com a urgência das medidas necessárias para deter o processo de empobrecimento que está levando as populações rurais ao desespero. O Judiciário, que poderia contribuir para minorar o problema, só faz agravá-lo.
Em um país que se pretende democrático, não cabe uma justiça de classe: atenta e prestativa às camadas ricas da população; míope para ver o direito dos pobres; e surda para os seus clamores.
Muitas cartas indignadas chegam às redações dos jornais reclamando da selvageria dos sem-terra quando eles ocupam edifícios do Incra, fecham estradas, depredam postos de pedágio, ocupam terras.
Os que assim reclamam - se não são interessados ou hipócritas - deviam atentar para o óbvio: todos esses atos não passam de gestos destinados a chamar a atenção da sociedade para o drama dos sem-terra.
Afinal, o que querem as pessoas investidas no poder do Estado brasileiro? Uma nova Colômbia?
FÁBIO KONDER COMPARATO , 70, advogado, professor titular aposentado da faculdade de Direito da USP e presidente da Comissão de Defesa da República e da Democracia do Conselho Federal da OAB.
JOSÉ AFONSO DA SILVA , 81, advogado, professor aposentado da faculdade de Direito da USP, é autor de "Curso de Direito Constitucional Positivo", entre outras obras. Foi secretário da Segurança Pública no governo Covas.
Fonte: Jornal Folha de São Paulo – Caderno Opinião (São Paulo, terça-feira, 17 de abril de 2007).